Nos primórdios do cinema, há protagonistas como o inglês Eadweard Muybridge e o material que ele produziu com um aparato chamado zoopraxiscópio; há criações de Thomas Edison, na plataforma do cinetoscópio, com o qual circulou por feiras e congressos, aos fins do século 19, e ainda muito se fala dos nomes de Charles Pathé e do produtor de teatro e mágico Georges Méliès, o criador de uma revolucionária ficção chamada Viagem à lua, datada de 1902. Mas, entre 1895 e 1905, houve a Societé Lumière, que produziu mais de 1400 filmes. Diretamente associada ao feito está o nome dos irmãos Louis e Auguste Lumière que, dedicados à manufatura de equipamentos e insumos fotográficos, em 1894, ficaram com a imaginação a mil, ao conhecer um aparelho que gravava movimentos (mas não projetava as imagens) — dele foi originado o cinematógrafo, patenteado em 13 de fevereiro de 1895, data capaz de inscrevê-los como os “pais do cinema”. Com mais de 200 filmes, a mostra Lumière Cineasta transcorre até 1º de março, no CCBB.
A escrita das imagens em movimento, com equipamentos derivados da observação da máquina de costura, nas mãos dos Lumière resultou na primeira projeção pública do cinema da dupla que desenvolveu o intelecto em Lyon (França) e, em Paris, no Grand Café do Boulevard des Capucines, exibiu ao público, filmes, em 28 de dezembro de 1895. Nas coordenadas para a programação a ser vista no CCBB estiveram afunilamentos temáticos. “A unidade veio naturalmente. Apesar de muito extensa, a produção dos Lumière tem certas recorrências, que logo identificamos como temas-chave: a cidade, o trabalho, o filme de viagem, o registro familiar, a comédia, os “panoramas” filmados de trens, carros ou barcos”, explica Calac Nogueira, curador da mostra, ao lado dos colegas Lucas Baptista e Maria Chiaretti.
Apenas 10% do catálogo completo dos Lumière passaram por restauração recente, estando disponível em alta resolução. “Nós trouxemos algumas vistas (expressão que designa as produções assinadas pelos Lumière) não restauradas, que praticamente não circulam, e a diferença é gritante. Nas restauradas você percebe muito mais informação na imagem, o que é importantíssimo para o tipo de relação que se tem com toda a obra. Existe um continente de vistas aguardando restauração. O que se tem restaurado, em boas condições de ser visto, é muito pouco perto do conjunto”, explica Calac.
Na curadoria, claro, houve percepção de que “o engajamento” e a predisposição do espectador precisa ser outra, dada a realidade narrativa dos filmes contemporâneos. Por “aproximação” com títulos de cineastas de períodos diversos, os curadores pretendem destacar aspectos da produção dos Lumière. “Há filmes do período silencioso que funcionam bem para as plateias de hoje — filmes de diretores como Murnau, Dreyer e Dziga Vertov. Mas há um verdadeiro corte entre o chamado “primeiro cinema” (até 1905), e a nossa experiência de cinema hoje. Não só pela falta de narrativa nos filmes do primeiro cinema, mas porque as próprias práticas de exibição eram outras” comenta Calac. Entra em cena, daí a ideia de associar os Lumière a universos como o do programa A Invenção do Burlesco (que dá partida à mostra, hoje).
Com O regador regado — um dos pioneiros categorizados como ficção —, A babá e o soldado e Coladores de cartazes (todos de 1897) e outros 15 filmes dos Lumière, tudo de uma só tacada, A Invenção do Burlesco acopla ainda filmes do comediante Buster Keaton (ao lado de Edward F. Cline) como O espantalho (1920), em que trabalhadores rurais conciliam interesse amorosos e uso de equipamentos dinâmicos para uma fazenda, Vizinhos e Uma semana (ambos de 1920) em torno de crises de casais.
Aglutinado de vidas
Em 2020, quando o cinema completa 125 anos, mais de 190 realizações dos Lumière poderão ser vistas no CCBB. Filmes com reconstrução de cenas históricas, experiências peculiares como o filme Fumando ópio (1899) e registros da expansão da colonização europeia, a maioria com 50 segundos de duração, compõem a epopeia dos Lumière. Curtas que destacavam a saída de trabalhadores das fábricas, obras que mostravam eventos como a chegada de trens a estações e tinham a grandiosidade de revelar fatos da época como a coroação do czar Nikolai II, em Moscou (em 1898) antecederam a saída dos Lumière de cena — eles optariam por investir na expansão dos processos de cinema como a perseguição das projeções em três dimensões e criaram engenhocas que alçaram os filmes à era das cores. Isso, muito antes da fundação de Hollywood, em 1910, com o filme Na velha Califórnia (de D. W. Griffith).
A vanguarda dos Lumière, na mostra, ganha plenitude com exibição da série Filme-Retrato, programa que trará fitas como Refeição do bebê (1895) e a possibilidade de se ver ícones da contracultura em produções em 16mm como Cenas da vida de Andy Warhol (de Jonas Mekas, morto há um ano, em Nova York), uma película que traz imagens de Allan Ginsburg e Yoko Ono, entre outros. Com menos dos estabelecidos 15 minutos de fama, bastaram quatro minutos de desconforto de personalidades que visitaram o ateliê de Warhol, e vivenciaram a eternidade da solidão em frente a câmera, por 240 segundos — o material está em Screen Test (1967).
Além de um filme de Jean Renoir, a mostra terá marco da cinematografia de Roberto Rosselini, de 1959, chamado Índia: Matri Bhumi, que mescla documentário e ficção. Pela série Devaneios e Deslocamentos, em que sequências com a câmera em movimento são protagonistas, desponta a raridade Amelia Steiner (1979), dirigido e protagonizado pela célebre escritora Marguerite Duras: por 28 minutos, no rio Sena, ela lê parte da ficção de fundo sentimental criada para suas personagens.
Lumière Cineasta
CCBB (SCES Tr. 02, 3108-7600)
Ingressos a R$ 10 e R$ 5 (meia). Mostra segue até 1º de março.