Mesmo que ainda não a passos largos, as conquistas pela equidade de gênero no mercado imobiliário têm avançado. No Brasil, o exercício da profissão de corretor de imóveis passou a ser permitido para mulheres somente em março de 1958 e, apesar de o número de corretoras ter crescido 144% entre 2003 e 2013, elas são apenas 30% dos profissionais que atuam legalmente na atividade, de acordo com a pesquisa mais recente do COFECI (Conselho Federal de Corretores de Imóveis). Em São Paulo, as mulheres representam 34% do total de corretores, segundo dados de 2020 do CRECI-SP (Conselho Regional de Fiscalização do Profissional Corretor de Imóveis).
Em outros níveis de atuação do setor, a situação não é muito diferente – e, quando se fala em cargos de liderança, o funil fica ainda mais estreito. O estudo Mulheres no Mercado Imobiliário, realizado pela Datastore em parceria com a especialista em marketing imobiliário Raquel Trevisan e o movimento Mulheres do Imobiliário, focado em apoio, networking e capacitação profissional, ouviu mais de 800 profissionais de todas as regiões brasileiras. Enquanto 93% das entrevistadas reconhecem que vêm conquistando espaços significativos nos últimos anos e 39% têm a percepção de conseguirem as mesmas oportunidades que os homens, somente 28% citaram que os cargos de liderança são ocupados por mulheres.
O levantamento apontou ainda situações que exigem mudanças contundentes: 61% afirmaram que já sofreram assédio sexual, moral ou verbal no trabalho e 21% não denunciaram por medo de perder o emprego e por não acreditarem no processo punitivo. Outro dado preocupante é que 44% tiveram dificuldade para retornar ao trabalho após a maternidade (número que sobe para 50% no sudeste) e 61% acreditam que ser mãe e profissional no setor de imóveis ainda é um tabu.
Mudanças estruturais
“O mercado imobiliário é machista, masculino e masculinizado”, observa Elisa Tawil, idealizadora do Mulheres do Imobiliário, executiva da eXp Brasil e autora do livro “Proprietárias – A ascensão da liderança feminina no setor imobiliário” (Maquinaria Editorial). “Machista porque ainda mantém a mulher como coadjuvante, masculino porque é majoritariamente composto por homens – uma voz masculina e branca, aliás – e masculinizado porque as mulheres precisam usar instrumentos masculinos para se desenvolver no mercado, eliminando características mais típicas delas, como empatia e sensibilidade”, explica.
A especialista, que discute a importância da conquista financeira da mulher através do segmento e a relevância de sua participação em todos os níveis do mercado, diz que a ascensão aos cargos de gerência ainda é um degrau quebrado e, no caso dos cargos de liderança, um telhado de vidro. “Só que ter mais mulheres nessas posições é uma questão estratégica para se comunicar com o público-alvo”, defende. “Se antes as palavras patrimônio e matrimônio, que vêm do latim pater e mater (pai e mãe), criaram uma dinâmica de quem deve construir o quê, hoje a família tem um modelo plural. A última pesquisa do IBGE mostrou que 52% da população brasileira são mulheres e metade delas são chefes de família. A mulher é uma grande influenciadora na decisão de compra e essa influência direta é proporcional ao lucro do setor”, ela sublinha.
“Percebi que era só comigo”
Diretora da MBigucci, a advogada, arquiteta e urbanista Roberta Bigucci, pós-graduada em administração financeira, técnica em transações imobiliárias e mãe de quatro filhos, conta que entrou na empresa do pai aos 13 anos como “office girl” da contabilidade. “Eu queria saber como cada área funcionava, aprender mesmo”, diz.
Hoje, com 35 anos de casa, ela está à frente dos departamentos de RH, TI, SAC, atendimento ao cliente e dos programas de responsabilidade socioambiental da construtora, que abrangem desde ações de preservação ao meio ambiente na construção e benefícios sociais e ambientais para comunidades do entorno das obras até apoio a iniciativas de inovação e startups. “A parte social vem de família, mas a preocupação ambiental e com inovação foi uma inquietude minha mesmo”, relata a executiva, que criou as ações muito antes de o conceito de ESG bater à porta do mercado.
Roberta fala que atualmente, tanto entre os colaboradores quanto na gerência, as mulheres são maioria na MBigucci.
“Mas sim, muitas vezes tive que assumir uma postura mais masculina porque é impressionante como o tom de voz da mulher passa batido”, revela. “Já melhorou bastante, mas perdi a conta das vezes em que tive quase que gritar para ser ouvida. No começo eu achava que era normal, que as pessoas se interrompem nas reuniões, mas depois percebi que era só comigo.”
Para ela, os grandes movimentos em prol da equidade de gênero no mercado imobiliário são essenciais não só para conscientizar os homens sobre a necessidade de mudança, mas também as mulheres. “Porque tem mulheres extremamente machistas e, se isso continuar, não vamos a lugar nenhum”, alerta a executiva. “Volta e meia alguém traz uma questão que me deixa perplexa e eu faço questão de indagar: ‘você perguntaria isso para um homem?’ Só aí a pessoa se toca.”
Sucessor, não: sucessora
“Eu nasci dentro da obra, cresci dentro de marcenaria”, conta Bianca Setin, COO da Setin Incorporadora, que também trabalhou na empresa desde menina. No tempo da faculdade de arquitetura, ela saiu para estagiar em um escritório de interiores e em obras de hotelaria. Chegou a abrir um escritório próprio com uma sócia, em que ela tocava as obras – sua grande paixão – e a sócia assumia os projetos.
Quando seu segundo filho estava com 2 anos, ela tomou a decisão de deixar a sociedade e trabalhar como autônoma para ficar mais perto das crianças. “Mas, em 2010, o Antonio (como ela chama o pai e fundador da Setin, Antonio Setin, no ambiente de trabalho) me convidou a voltar porque ia retomar os projetos hoteleiros. Voltei e acabei assumindo e estruturando toda a área de produto”, lembra.
Ela estava no cargo havia cinco anos quando leu uma entrevista em que o pai dizia que não tinha um sucessor. Aquilo a deixou incomodada. “No dia seguinte, às sete da manhã, sentei para falar com ele a respeito. Ele se surpreendeu, disse que eu nunca tinha demonstrado essa vontade. E eu falei que queria que ele me ensinasse a ser a sucessora dele”, revela.
Depois de formar outra profissional por um ano para assumir a cadeira dela na gerência de produto, a executiva passou a ficar ao lado do pai em tudo. Ela é a responsável pela gestão de pessoas, TI, jurídico e engenharia. Seis meses atrás, assumiu também o controle do financeiro. “Hoje todas as decisões são tomadas em conjunto entre nós dois”, diz.
Ela também trouxe a questão da equidade com força. Atualmente, 63% do time são mulheres, sendo que 52% estão em cargos de liderança. “Dos seis gerentes que estão comigo no dia a dia, quatro são mulheres. Isso faz com que a gente consiga implantar muita coisa com visão feminina”, explica. “A mulher tem um olhar ambivalente, que abrange o todo e os detalhes ao mesmo tempo. É uma forma de prever o caos.”
Como exemplo, a COO cita o fato de terem conseguido levar os 110 colaboradores para o home office e digitalizar o negócio em uma semana, quando chegou a pandemia – coisa que os negócios imobiliários, por serem 100% presenciais e bastante conservadores, tiveram mais dificuldade de fazer.
“A mulher tem uma rotina muito dura, com o desafio de adequar família e carreira. Ao mesmo tempo, justamente por lidarmos com as urgências e imprevisibilidades desse dia a dia, acabamos sendo mais objetivas nas entregas. É uma urgência feminina que caminha mais rápido para a solução”, ela conclui.
Com informações Estadão Conteúdo